Sunday, January 14, 2007

Fragmentos sobre um corpo III

A outra mão

A outra mão. A que é amada. A que lê os sinais do imponderável. A que habita o exílio e é feliz. Com ela existo na imensidão da insónia. Nela me recolho para amar e vencer o mundo.

Fragmentos sobre um corpo II

A mão

A mão exibe a matéria anterior, regista a mutação, o idílio. Reverte o tempo à sua origem e desta aponta o termo.

A mão escreve. Escreve-se no gesto em que se afasta de si e cria um mundo sem princípio nem fim. Pura carícia sobre o rosto do espanto.

Fragmentos sobre um corpo I

Este corpo sobre o qual escrevo é o corpo amado. Impossível. Inexistente. Sobre ele, entre a pele e a pele, assim a escrita, infinitamente, até ao êxtase e muito depois dele. Sobretudo. Quando o êxtase é, ainda, tão pouco. Coisa, ainda, excessivamente mundana. Adiar o êxtase. Escrever.

Friday, January 12, 2007

Entrevista de Ana Marques Gastão a Maria Filomena Molder no DN de hoje (12-01-07)

A ler absolutamente. Como, de resto, todas as entrevistas que AMG costuma publicar na revista do DN.


AMG é jornalista, mas é, acima de tudo, uma enormíssima poeta, possuidora, para além disso, de uma rara sensibilidade às coisas do pensamento. Por isso, esta entrevista com Filomena Molder - um dos grandes nomes do ensaísmo filosófico português actual - constitui uma peça interessantíssima, plena de matéria para reflexão. As questões colocadas (a propósito do mais recente livro de MFM - O absoluto pertence à terra - uma densíssima e importantíssima reflexão sobre Broch, mas não só) remetem, sistematicamente, não apenas para o livro em questão, mas para a essência do pensar, do filosofar e do poetar. As respostas de MFM constituem, por sua vez, verdadeiros momentos de pensamento e de afirmação filosófica.


Das muitas questões que valeria a pena considerar, permito-me centrar-me em duas em que, de um modo ou de outro, está em jogo a natureza do filosofar e do poetar.


Começo pela primeira questão colocada por AMG que escreve: "Quando se lêem os seus ensaios, deparamo-nos com a fusão entre o peremptório, o luminoso e o incompreensível no sentido de um enigma".


MFM escreve: "Peremptório é um tom de voz impróprio quando está em causa exprimir o pensamento".


"Peremptório", de "peremptoriu", decisivo, terminante. Todo o pensamento se afirma de modo peremptório porque só há pensamento enquanto acto ou enunciação decisiva, terminante. No acto-momento da sua formulação, o pensamento termina uma questão, responde-lhe com uma afirmação. O que acontece depois não pertence já a esse momento de pensamento. É um outro momento, um outro pensamento. Ora, o mais decisivo é, precisamente, esse momento em que a compreensão acontece. O teórico é afirmação indiscutível. É isso que o distingue do poético, que é afirmação, todavia não indiscutível, mas apenas porque a afirmação não é posta à discussão, diferentemente da filosofia. A discussão do filosófico não tem a forma da interrogação, mas do combate entre afirmações. Uma vez mais, o objectivo é peremptoriu.


Indiscutível não quer dizer que não se possa discutir, mas que qualquer força que o tente fazer é sempre mais fraca do que aquela que gerou a afirmação. Por isso, podemos considerar que o filosófico é peremptório, embora "peremptório" não seja uma palavra bonita. Ou, talvez, simplesmente, faça ecoar em nós imagens excessivamente condenadas ideologicamente. É também excessivamente ligada ao subjectivo, ao acto de enunciação. Mas trata-se, apesar de tudo, creio, de uma questão menor.


A outra questão versa sobre o Zaratustra de Nietzsche, sobre o qual MFM escreve: "Considero Assim Falava Zaratustra uma obra teórica e não poética, embora haja nela tantos elementos narrativos, tanto convite à dança".


No meu entender, o Zaratustra é, sem dúvida, uma obra teórica. É talvez mesmo o mais teórico dos textos de Nietzsche. Contém o indiscutível do teórico e o indiscutível do poético.


Mas o que permite decidir do género de um texto? A sua retórica específica? A organização das forças internas? A leitura sugerida? A leitura possível?


Todo o texto é, simultaneamente, concêntrico e excêntrico a si mesmo. Daí a sua intrínseca multiplicidade. O texto é um objecto resultante de duas decisões de leitura: a do autor e a do leitor. Mesmo aquelas hipóteses que enunciei dependem destas instâncias. Não há texto em si. O que seria o texto em si é mera linguagem. Ora, não é com a linguagem que verdadeiramente lidamos (não é ela que verdadeiramente interessa), mas com actos, com gestos, com movimentos, com acções que são suportados por essa matéria linguística e sobre a qual tudo isso se instala, confundindo-se com a linguagem, com o pensamento, com o desejo que sempre procura ligar - de uma ou de outra forma - os dois. Donde os mitos de uma linguagem e de um pensamento puros.


Apesar de tudo... O teórico afirma, e afirma qualquer coisa. O poético afirma, mas aquilo que afirma não é idêntico ao que é enunciado. Não são da mesma natureza. A poesia não será, pois, peremptória, pois com ela nada termina. Ora, no Zaratustra, a afirmação e o que é afirmado buscam uma identidade, precisamente no convite à dança, que podíamos pensar, neste contexto, como ponto de fuga da questão genológica e da questão vivencial. Trata-se de deixar para trás, de terminar a questão do homem.

Friday, January 5, 2007

Abrir a noite sob a forma de uma fonte

Abrir a noite sob a forma de uma fonte
onde chega o destino antes da perturbação.

Um gesto que cruza o limite da terra.

E ainda assim um outro tempo se aproxima denso perfumado
obrigando-te a contrair a pele
a descrer das memórias mais fundas
a acender uma lâmpada onde havia apenas um corpo glorioso.

Muito depois de esgotada essa fonte
todos os deuses brilhando no céu que te encobre o medo
resta uma palavra a que darás o teu próprio nome
fonte de nada mundo esquecimento.

O essencial e o superficial

O essencial é, podemos dizer, um absoluto. O absoluto da vida, o absoluto da morte. Contra ele ergue-se, constantemente, a relatividade do superficial. Esta distinção, tão enraizada no nosso modo de existência, precisa de ser pensada.

Talvez a primeira forma de o fazer consista em lançar uma dúvida sobre a absolutidade do essencial.

Retirar-se do mundo para viver o essencial. É o gesto do ermita, do anacoreta. É o gesto, tantas vezes repetido no repúdio do que se afigura como superficial, como irrelevante. Repudiámo-lo em nome de um valor mais elevado. E, todavia, qual o critério que usamos para estabelecer essa distinção? Na verdade, não existe tal critério. Apenas uma norma do senso comum, puramente ideológica, ou então, uma sensação. Se a primeira deve ser desprezada, à segunda temos que conceder toda a nossa atenção. Se o fizermos, percebemos que uma sensação só pode ser local. O local, o locus, é o único critério de essencialidade. Ínfimo, mas resposta incontornável às nossas interrogações informuladas.

Uma palavra. Um gesto. Um silêncio. Um movimento. Eis coisas possivelmente essenciais. A decisão de uma vida. Um juízo. Eis coisas possivelmente superficiais.

Wednesday, December 27, 2006

Citação

“Mais tarde – quando aconteceram as coisas que eles nunca poderiam ter imaginado – ela escreveu-lhe uma carta que dizia: Quando é que vais aprender que não existem umas palavras para tudo?” (Nicole Krauss, A História do Amor, p. 21).