A ler absolutamente. Como, de resto, todas as entrevistas que AMG costuma publicar na revista do DN.
AMG é jornalista, mas é, acima de tudo, uma enormíssima poeta, possuidora, para além disso, de uma rara sensibilidade às coisas do pensamento. Por isso, esta entrevista com Filomena Molder - um dos grandes nomes do ensaísmo filosófico português actual - constitui uma peça interessantíssima, plena de matéria para reflexão. As questões colocadas (a propósito do mais recente livro de MFM - O absoluto pertence à terra - uma densíssima e importantíssima reflexão sobre Broch, mas não só) remetem, sistematicamente, não apenas para o livro em questão, mas para a essência do pensar, do filosofar e do poetar. As respostas de MFM constituem, por sua vez, verdadeiros momentos de pensamento e de afirmação filosófica.
Das muitas questões que valeria a pena considerar, permito-me centrar-me em duas em que, de um modo ou de outro, está em jogo a natureza do filosofar e do poetar.
Começo pela primeira questão colocada por AMG que escreve: "Quando se lêem os seus ensaios, deparamo-nos com a fusão entre o peremptório, o luminoso e o incompreensível no sentido de um enigma".
MFM escreve: "Peremptório é um tom de voz impróprio quando está em causa exprimir o pensamento".
"Peremptório", de "peremptoriu", decisivo, terminante. Todo o pensamento se afirma de modo peremptório porque só há pensamento enquanto acto ou enunciação decisiva, terminante. No acto-momento da sua formulação, o pensamento termina uma questão, responde-lhe com uma afirmação. O que acontece depois não pertence já a esse momento de pensamento. É um outro momento, um outro pensamento. Ora, o mais decisivo é, precisamente, esse momento em que a compreensão acontece. O teórico é afirmação indiscutível. É isso que o distingue do poético, que é afirmação, todavia não indiscutível, mas apenas porque a afirmação não é posta à discussão, diferentemente da filosofia. A discussão do filosófico não tem a forma da interrogação, mas do combate entre afirmações. Uma vez mais, o objectivo é peremptoriu.
Indiscutível não quer dizer que não se possa discutir, mas que qualquer força que o tente fazer é sempre mais fraca do que aquela que gerou a afirmação. Por isso, podemos considerar que o filosófico é peremptório, embora "peremptório" não seja uma palavra bonita. Ou, talvez, simplesmente, faça ecoar em nós imagens excessivamente condenadas ideologicamente. É também excessivamente ligada ao subjectivo, ao acto de enunciação. Mas trata-se, apesar de tudo, creio, de uma questão menor.
A outra questão versa sobre o Zaratustra de Nietzsche, sobre o qual MFM escreve: "Considero Assim Falava Zaratustra uma obra teórica e não poética, embora haja nela tantos elementos narrativos, tanto convite à dança".
No meu entender, o Zaratustra é, sem dúvida, uma obra teórica. É talvez mesmo o mais teórico dos textos de Nietzsche. Contém o indiscutível do teórico e o indiscutível do poético.
Mas o que permite decidir do género de um texto? A sua retórica específica? A organização das forças internas? A leitura sugerida? A leitura possível?
Todo o texto é, simultaneamente, concêntrico e excêntrico a si mesmo. Daí a sua intrínseca multiplicidade. O texto é um objecto resultante de duas decisões de leitura: a do autor e a do leitor. Mesmo aquelas hipóteses que enunciei dependem destas instâncias. Não há texto em si. O que seria o texto em si é mera linguagem. Ora, não é com a linguagem que verdadeiramente lidamos (não é ela que verdadeiramente interessa), mas com actos, com gestos, com movimentos, com acções que são suportados por essa matéria linguística e sobre a qual tudo isso se instala, confundindo-se com a linguagem, com o pensamento, com o desejo que sempre procura ligar - de uma ou de outra forma - os dois. Donde os mitos de uma linguagem e de um pensamento puros.
Apesar de tudo... O teórico afirma, e afirma qualquer coisa. O poético afirma, mas aquilo que afirma não é idêntico ao que é enunciado. Não são da mesma natureza. A poesia não será, pois, peremptória, pois com ela nada termina. Ora, no Zaratustra, a afirmação e o que é afirmado buscam uma identidade, precisamente no convite à dança, que podíamos pensar, neste contexto, como ponto de fuga da questão genológica e da questão vivencial. Trata-se de deixar para trás, de terminar a questão do homem.
AMG é jornalista, mas é, acima de tudo, uma enormíssima poeta, possuidora, para além disso, de uma rara sensibilidade às coisas do pensamento. Por isso, esta entrevista com Filomena Molder - um dos grandes nomes do ensaísmo filosófico português actual - constitui uma peça interessantíssima, plena de matéria para reflexão. As questões colocadas (a propósito do mais recente livro de MFM - O absoluto pertence à terra - uma densíssima e importantíssima reflexão sobre Broch, mas não só) remetem, sistematicamente, não apenas para o livro em questão, mas para a essência do pensar, do filosofar e do poetar. As respostas de MFM constituem, por sua vez, verdadeiros momentos de pensamento e de afirmação filosófica.
Das muitas questões que valeria a pena considerar, permito-me centrar-me em duas em que, de um modo ou de outro, está em jogo a natureza do filosofar e do poetar.
Começo pela primeira questão colocada por AMG que escreve: "Quando se lêem os seus ensaios, deparamo-nos com a fusão entre o peremptório, o luminoso e o incompreensível no sentido de um enigma".
MFM escreve: "Peremptório é um tom de voz impróprio quando está em causa exprimir o pensamento".
"Peremptório", de "peremptoriu", decisivo, terminante. Todo o pensamento se afirma de modo peremptório porque só há pensamento enquanto acto ou enunciação decisiva, terminante. No acto-momento da sua formulação, o pensamento termina uma questão, responde-lhe com uma afirmação. O que acontece depois não pertence já a esse momento de pensamento. É um outro momento, um outro pensamento. Ora, o mais decisivo é, precisamente, esse momento em que a compreensão acontece. O teórico é afirmação indiscutível. É isso que o distingue do poético, que é afirmação, todavia não indiscutível, mas apenas porque a afirmação não é posta à discussão, diferentemente da filosofia. A discussão do filosófico não tem a forma da interrogação, mas do combate entre afirmações. Uma vez mais, o objectivo é peremptoriu.
Indiscutível não quer dizer que não se possa discutir, mas que qualquer força que o tente fazer é sempre mais fraca do que aquela que gerou a afirmação. Por isso, podemos considerar que o filosófico é peremptório, embora "peremptório" não seja uma palavra bonita. Ou, talvez, simplesmente, faça ecoar em nós imagens excessivamente condenadas ideologicamente. É também excessivamente ligada ao subjectivo, ao acto de enunciação. Mas trata-se, apesar de tudo, creio, de uma questão menor.
A outra questão versa sobre o Zaratustra de Nietzsche, sobre o qual MFM escreve: "Considero Assim Falava Zaratustra uma obra teórica e não poética, embora haja nela tantos elementos narrativos, tanto convite à dança".
No meu entender, o Zaratustra é, sem dúvida, uma obra teórica. É talvez mesmo o mais teórico dos textos de Nietzsche. Contém o indiscutível do teórico e o indiscutível do poético.
Mas o que permite decidir do género de um texto? A sua retórica específica? A organização das forças internas? A leitura sugerida? A leitura possível?
Todo o texto é, simultaneamente, concêntrico e excêntrico a si mesmo. Daí a sua intrínseca multiplicidade. O texto é um objecto resultante de duas decisões de leitura: a do autor e a do leitor. Mesmo aquelas hipóteses que enunciei dependem destas instâncias. Não há texto em si. O que seria o texto em si é mera linguagem. Ora, não é com a linguagem que verdadeiramente lidamos (não é ela que verdadeiramente interessa), mas com actos, com gestos, com movimentos, com acções que são suportados por essa matéria linguística e sobre a qual tudo isso se instala, confundindo-se com a linguagem, com o pensamento, com o desejo que sempre procura ligar - de uma ou de outra forma - os dois. Donde os mitos de uma linguagem e de um pensamento puros.
Apesar de tudo... O teórico afirma, e afirma qualquer coisa. O poético afirma, mas aquilo que afirma não é idêntico ao que é enunciado. Não são da mesma natureza. A poesia não será, pois, peremptória, pois com ela nada termina. Ora, no Zaratustra, a afirmação e o que é afirmado buscam uma identidade, precisamente no convite à dança, que podíamos pensar, neste contexto, como ponto de fuga da questão genológica e da questão vivencial. Trata-se de deixar para trás, de terminar a questão do homem.
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